Review: Abzû

Terminei Abzû ontem. O baixo preço no PC (R$ 25 na Nuuvem) me fez querer tirar logo uma dúvida que tinha desde que soube da existência do jogo: como ele se compara a Journey? Aliás, a comparação é justa? O jogo da thatgamecompany é “replicável”? O copo está meio cheio ou meio vazio?

abzu-packshot-cover-boxartPara quem não está ligado, Abzû é um jogo indie da Giant Squid, estúdio fundado pelo ex-diretor de arte de Journey. O título foi lançado terça passada no PS4 e no Steam, foi razoavelmente bem recebido no Metacritic e faz parte do programa Play 2016 da Sony. Trata-se de uma espécie de experiência de narrativa e simulação de mergulho, estilizada e linear, que já no trailer sugeria muita coisa em comum com a estética de Journey. Na prática, as semelhanças vão muito além do visual.

Uma jornada curta e bela

Abzû, como seria de esperar, é lindíssimo no seu minimalismo. Há uma recorrência de conceitos visuais de Journey, como o protagonista com a cabeça quadrada e olhos espaçados. Do meio para a frente, o jogo apresenta alguns cenários um tanto mais detalhados, ainda que no mesmo estilo, e uma paleta de cores mais ampla no geral. As animações de movimentação calma e deliberada, os painéis com pictogramas inspirados em civilizações antigas, o barulhinho de “sonar” ao apertar um botão e a trilha sonora por Austin Wintory, entre outros detalhes, estão todos de volta. Até me arrisco a dizer que a trilha consegue ser ainda melhor que a de Journey, com momentos mais alegres em meio à melancolia e à solenidade.

AbzuPictogramas

Assim como JourneyAbzû dura entre 2 a 3 horas, dependendo de quão imerso (#badumtiss) o jogador ficar. No meu caso, foram pouco mais de 2 horas e meia em um ritmo um tanto relaxado, procurando segredos e observando os peixes em alguns momentos. É curto demais? Para o tipo de experiência que oferece e a um preço condizente, é a duração certa. É possível voltar a qualquer um dos capítulos para explorar mais essa “simulação”, o que estende um pouco o retorno pelo dinheiro, principalmente para os completistas… Mas não passa muito disso.

Uma jornada linear e conduzida

Da mesma forma, a jogabilidade de Abzû é simplista, com pouquíssima interatividade. Se essa era sua principal bronca com Journey, não espere nada muito diferente aqui: é seguir em frente, apertar o “sonar” para induzir reações em objetos, desviar de obstáculos ameaçadores (porém não letais), acompanhar habitantes daquele mundo e tentar passar por pontos específicos em momentos on-rails da experiência. Não há quase nada além. Apesar de Abzû ter um quê de “simulação de vida marinha”, o jogador-protagonista está lá apenas como observador na imensa maioria do tempo.

AbzuOnRails

As principais diferenças de Abzû aparecem em duas formas: meditação e interface. Ao encontrar uma determinada estátua em uma área, o jogador pode apertar o “sonar” para sentar-se nela e “meditar”, o que “libera” a câmera naquele local para que você observe a fauna subaquática. O jogo também se assume um pouco mais como tal na interface, mostrando explicitamente ícones de interação, botões de controle, nomes dos peixes e a estrutura dos capítulos no menu. Há dois ou três quebra-cabeças levíssimos no jogo inteiro, todos para abrir portas, mas nada que configure uma “evolução” ou “guinada” na fórmula básica de Journey para deixá-la mais “jogo” e menos “experiência interativa”.

O interessante da meditação é permitir que o jogador observe melhor o trabalho feito na reconstrução de um ambiente submarino: peixes, lulas, moluscos e afins diferentes vivem em cada local, e há uma leve cadeia alimentar ali, com alguns animais devorando outros. Uma vez utilizada, a estátua permite voltar àquele local para meditar a partir do menu principal do jogo. Só que a movimentação da câmera de meditação não é 100% livre: o jogador pode direcionar a visão para cardumes ou animais específicos e empurrar o analógico esquerdo na direção geral deles, e só. Com a alta quantidade de “alvos” e esse esquema de controle sem “mira”, é difícil “acertar” o animal que se quer ver de perto; para piorar, em pelo menos dois momentos a câmera “se perdeu” e foi parar fora do cenário.

AbzuMeditation2

Uma jornada emocionante e um pouco mais centrada

Não, as comparações com Journey ainda não terminaram, e não adianta reclamar disso: a “culpa” é totalmente dos desenvolvedores neste caso. Abzû repete muitos elementos em sua narrativa, e até em boa parte de sua estrutura. Ou seja, o jogador começa como um ser humanoide que claramente não pertence à raça humana “comum”; parte em uma jornada de exploração e autoconhecimento; se diverte e passeia com o que encontra; topa com artefatos de uma civilização antiga que parece ser a sua; enfrenta um momento de conflito etc. Quem jogou Journey sabe a cantilena.

AbzuCivilizacaoAbzû ocasionalmente se desvencilha de Journey no campo da experiência narrativa. Desta vez, a trama parece ser mais sobre o personagem em si do que uma grande metáfora de reencarnação, embora haja sim um elemento de “renascimento” aqui também. Parte da natureza do protagonista é revelada em determinado ponto, formando um plot twist razoável que merece ser especialmente protegido contra spoilers. Em escala menor, o papel de um NPC pode surpreender incautos. A civilização antiga do jogo tem um lado um tanto diferente daquela de Journey. Somando tudo, nada de cair o queixo, mas que ajuda a empurrar o jogador mais cínico adiante.

O negócio é que a experiência geral de Abzû acaba explicitando, por contraste, o maior ponto forte de Journey

Uma jornada sem muito propósito

Como escrevi aqui em uma análise de Journey, o casamento entre forma e função do jogo era especialmente poderoso graças à mecânica da echarpe e à sacada de reunir no jogo pessoas online não identificadas, sem praticamente nenhuma forma de comunicação. Esses conceitos não eram apenas novidades isoladas, e sim ferramentas cruciais para a ideia geral: adversidade reunindo pessoas em jornadas até então individuais. Journey tinha um forte componente de cooperação não-guiada em uma experiência que, de resto, era muito linear e conduzida.

AbzuTubaraoAbzû pode até se sustentar na comparação direta em termos de visual, música, narrativa e um pouquinho mais de interação, mas no geral soa um pouco “vazio” por não ter nada semelhante ou com o mesmo impacto. Parece que os desenvolvedores não tinham suporte/condições de fazer nada online e tentaram “compensar” adicionando o componente de “simulação”. O problema é que esse lado do jogo é tão light (e às vezes bugado) que não chega nem perto de conferir um propósito maior. Se Journey também era experimento social-psicológico, Abzû é apenas experiência interativa.

Pode parecer injusto apontar isso quando os desenvolvedores não tiveram dinheiro para “ir além”, mas na verdade essa é uma questão Tostines; afinal, a Sony também abraçou Abzû, e parte das pessoas envolvidas são as mesmas. Será que o jogo não tem nada com o mesmo impacto da cooperação de Journey porque a Sony não quis bancar, ou a Sony não investiu mais porque o jogo não tinha nada do tipo desde seu conceito inicial? Para o usuário final, o jogador-consumidor, não interessa: o que importa é que o resultado fica aquém de Journey.

Recomendado com muitas ressalvas

Abzû não deve convencer ninguém que não gostou de Journey, com possíveis exceções muito particulares – por exemplo, alguém que queira uma espécie de aquário interativo para relaxar, ou que esperava um pouquinho mais de revelações e respostas na narrativa. O negócio é que também não deve invocar, nem de longe, as mesmas reações emocionais, seja pela falta do componente cooperativo ou pela forte sensação de “já vi isso antes”. Por outro lado, é uma maneira barata e muito bem produzida de “reviver” a bela experiência de Journey em um cenário diferente, com algumas surpresas no meio do caminho.

AbzuPeixes

Para quem joga no PC, há outro problema em Abzû: desempenho. A versão atual, ainda sem nenhum patch além do de “Dia 1”, roda inexplicavelmente mal em uma máquina que tira DoomThe DivisionFar Cry Primal e outros jogos grandes e/ou pesados de 2016 de letra. Qualquer virada de câmera brusca ou cenário com mais do que alguns peixes e plantas derruba o framerate para abaixo de 20 (sim, 20) por alguns segundos, mesmo reduzindo as configurações, e isso acontece com bastante frequência. O desempenho ruim não atrapalha a jogabilidade simplista, mas acaba desestimulando a exploração, justo um dos pontos fortes de Abzû. Jogadores de Steam talvez queiram esperar uma atualização maior que aborde framerate nas patch notes.

No geral, Abzû ainda é muito mais interessante, bem acabado e envolvente do que a maioria dos jogos indie “contemplativos” que a gente vê por aí. A questão é que os desenvolvedores claramente resolveram trabalhar no mesmo exato espaço de seu título anterior, e o jogo sofre por essa decisão quase tanto quanto tira proveito dela. Acaba se tornando mais um caso daqueles em que vale a pena jogar, desde que você encare com as expectativas corretas, mais contidas.

E aí, voltando às perguntas do início… Abzû não se compara a Journey; a comparação não é só justa, como inevitável e consciente; Journey é sim replicável, mas Abzû não chegou lá; e o copo está meio vazio para quem esperava algo tão impactante quanto, meio cheio para quem só queria mais do mesmo. Se peixe morre pela boca, Abzû “morre” pelas expectativas… mas “renasce” como uma experiência acima da média, pelo menos.

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